"Meu pai sempre nos ensinou a contemplar o céu, especialmente à noite, em busca de estrelas cadentes. Carioca, nascida no Grajaú e criada em Vila Isabel, parte dos feriados da minha infância foi passada em Minas Gerais, no vilarejo do Souza, às margens do rio Grande. A fazenda para onde íamos não tinha energia elétrica, apesar da proximidade com usinas hidrelétricas. Víamos ao longe as torres de transmissão. Como forasteiros, aproveitávamos a escuridão das noites de lua nova para observar as constelações, nos encantar com vagalumes e pirilampos e sempre festejar quando as estrelas cadentes cruzavam o céu ao encontro do horizonte. Nas manhãs seguintes caminhávamos pelas montanhas em busca das cachoeiras de águas cristalinas e livres. E contemplávamos aquela imensidão de morros, tentando descobrir onde cada estrada dava e atrás de quais morros ficavam as cidades e vilarejos que ouvíamos falar."
Daniella Feteira Soares é geógrafa, formada pela UFRJ em 1997. Em 2001 finalizou o Mestrado no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - IPPUR/ UFRJ. Com saudades da alergia ao pó de giz e com sede de mais conhecimento e de aguçar a visão crítica, voltou à universidade em 2004 para fazer o Doutorado também no IPPUR, concluído em 2009.
Trabalhar na área ambiental de uma empresa, como a Eletrobras (de 1999 a 2001 e de 2005 até o momento, sempre ligada à Diretoria de Geração e, mais recentemente, à Diretoria de Sustentabilidade) e em um Centro de Pesquisas, como o CEPEL (de 2001 a 2005), foram sonhos conquistados com bastante dedicação. Investigar os impactos da construção de uma obra de infraestrutura sobre a paisagem entendida como uma construção social, fruto da memória coletiva, foi algo que sempre a instigou desde a faculdade.
Segundo Daniella, trabalhar com a questão socioambiental significa exercitar cotidianamente a amplitude do nosso olhar profissional e pessoal. É necessário nos abrirmos para outras visões de mundo, carregadas de significados muitas vezes distintos dos nossos, estarmos disponíveis para conhecer outras culturas, para tecer conexões entre as mais diversas áreas de conhecimento ...
Em tempos em que temas como justiça ambiental e climática, direitos humanos, sustentabilidade corporativa, ESG/ ASG, geração de valor, para citar alguns, ganham cada vez mais importância e visibilidade é importante recuperar a gêneses dos conceitos associados a esses temas, trabalhar a interdisciplinaridade e não perder de vista o olhar ético sobre o objeto de nosso trabalho e sobre o propósito que temos não só como profissionais, mas como habitantes desse planeta e partes de um coletivo. Vivemos uma oportunidade de interconectar mais do que nunca os saberes, inclusive os tradicionais, para lidar com os desafios que a própria humanidade nos colocou.
O nosso Conselho editorial selecionou mais uma incrível trajetória de uma representante feminina do tão plural setor EletroEnérgético. Vem com a gente mergulhar em mais uma história inspiradora e de muito orgulho das nossas mulheres brasileiras?
Deleite-se na leitura!
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CB: O que motivou a sua escolha e desde quando pensou em integrar o Setor EletroEnergético?
DS: Logo no segundo ano da Faculdade de Geografia comecei como bolsista de iniciação científica em um projeto sobre Setor Elétrico e Organização Territorial, no IPPUR/ UFRJ. Pesquisamos sobre a formação do setor de energia elétrica no planejamento econômico estatal a partir de 1940, das missões técnicas estrangeiras e de cooperação econômica, passando pelo Plano de Metas, pela criação das empresas estatais, até o Plano Nacional de Energia Elétrica 1993-2015. Foram muitas as visitas feitas à Biblioteca Nacional, ao IPEA, à FGV, às bibliotecas da Light e da Eletrobras, além da pesquisa no acervo da Memória da Eletricidade, parte dele, em meados de 1990, guardado em um cofre no CPRM da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Foi durante as discussões do grupo de pesquisa e consultando o acervo da Memória o tema de minha monografia de final de curso foi definido. Pesquisei sobre uma cidade inundada em 1940 pela formação de um reservatório para a geração de energia elétrica, no vale do Paraíba fluminense: A Cidade do Lago: memória e paisagem de São João Marcos.
O projeto de pesquisa do IPPUR também prestava assessoria a movimentos sociais. Tive a oportunidade de participar de encontros e debates e de ajudar a organizar eventos com movimentos internacionais em um tempo em que a Internet reconfigurava os conceitos de espaço e de tempo. Tive acesso a professores e pesquisadores brasileiros e estrangeiros que fizeram os primeiros estudos nos campos da antropologia e da sociologia sobre os impactos socioambientais da construção de reservatórios, sobretudo relacionados ao deslocamento involuntário de populações. Atuar com políticas públicas, com planejamento territorial, escutar e promover a interação entre diferentes agentes sociais foram fios condutores de minha construção profissional.
Iniciar o mestrado em 1999 e logo receber um convite para integrar uma equipe interdisciplinar e aguerrida, como a do Departamento de Meio Ambiente da Eletrobras, significou a possibilidade de construir uma via de mão dupla entre os conhecimentos adquiridos com minha formação acadêmica e de extensão universitária com comunidades e os aprendizados do meio empresarial.
CB: Quais os desafios encontrados ao longo da sua trajetória e o que a fez prosseguir?
DS: Conjugar as atividades do trabalho e da universidade talvez tenha sido dos maiores desafios. Em 1999, quando fui convidada a integrar o Departamento de Meio Ambiente, eu já tinha finalizado os créditos das disciplinas do Mestrado e começava a escrever a dissertação, sobre Paisagem e Memória, Sete Quedas e a Usina Hidrelétrica de Itaipu, que foi finalizada em 2001. Mais tarde, me dividi novamente entre o trabalho e o doutorado, e esses anos foram especialmente desafiadores por conta das responsabilidades assumidas na empresa e por uma nova fase na minha vida pessoal.
Durante a elaboração da tese, eu acompanhei o desenvolvimento dos estudos de Inventário do rio Teles Pires, do rio Xingu e do trecho Binacional do rio Uruguai, os Estudos de Impacto Ambiental da UHE Belo Monte, as Avaliações Ambientais Integradas da EPE e passei a atuar em grupos de trabalho com representantes de todas as empresas Eletrobras e com o CEPEL que tinham como objetivo atender às crescentes demandas de mercado, como os questionários do Dow Jones e do Índice de Sustentabilidade Empresarial - ISE, relatórios e indicadores de desempenho ambiental. Foi uma oportunidade incrível de aprendizado, tanto do ponto de vista profissional como pessoal, ainda mais nas viagens de campo, realizadas com consultores de altíssima qualidade, nas atividades que envolviam contato direto com atingidos e seus representantes, com órgãos ambientais, em momentos em que o calor do momento pode, por vezes, ameaçar todo o trabalho.
Trabalho de campo no rio Uruguai, fronteira entre Brasil e Argentina, em 2013.
O maior desafio para mim, ao trabalhar com a temática socioambiental, é tentar conjugar diferentes visões de mundo, aproximar as diversas áreas de conhecimento, demonstrar que a atuação transversal da área de meio ambiente, que envolve também aspectos sociais, é estratégica, e que não se deve perder a conexão do trabalho que se desenvolve no ar-condicionado do escritório localizado, geralmente, em grandes centros urbanos, com o “chão”, com o território, com outros “modos de vida” que sofrerão os impactos das operações. Conseguimos avançar muito, trabalhando ao lado de colegas com formações bem diferentes das nossas, elaboramos manuais, metodologias, desenvolvemos trabalhos em que a temática socioambiental foi inserida, considerada desde o início. Mas há ainda, penso eu, um longo caminho a avançar no debate que colocou meio ambiente como um entrave ou como um aspecto a ser observado nas listas de checagem que fazem parte das etapas dos procedimentos administrativos.
Trabalho de campo em Altamira (PA), 2007.
CB: Sabedores dos esforços dedicados a conciliar família e trabalho, o que mais lhe ajudou neste sentido?
DS: A perda do meu pai enquanto eu fazia a monografia foi um impacto forte. Ele foi sempre um companheiro e compartilhava com minha mãe todas as decisões de nossa família. Três mulheres de braços dados criaram, então, seu futuro. Minha mãe foi e continua sendo nossa referência de batalhas e, sobretudo, de afeto. Minha irmã, outra fortaleza. O que mais me ajuda nos momentos difíceis é lembrar do que já passamos e manter o foco na integridade e na ética, na minha formação política, que me permite compreender o meu lugar de privilégio em uma sociedade tão injusta e desigual como a nossa. Busco força e coragem no coletivo que me cerca e no abraço demorado, que tudo cura ... Enquanto escrevo, penso que na minha casa a gente sempre teve a esperança do verbo esperançar. Buscamos sempre ter coragem, “ir sempre em frente”, ainda que a carga fosse pesada. Além da minha família e de amigos pessoais, acho que tive a felicidade de trabalhar com pessoas que entendem a importância de conviver em um ambiente de trabalho seguro e de apoio e contribuem para a criação desse tipo de ambiente.
CB: Que pessoas e por qual motivo foram de fundamental importância ao longo de sua trajetória profissional?
DS: São tantas as pessoas que me inspiraram, que compartilharam generosamente seu conhecimento comigo e que me auxiliaram a me formar, que, certamente, corro o risco de esquecer de alguém ...
Sem dúvida, meus professores do IPPUR, em especial os professores e colegas ligados ao Laboratório ETTERN – Estado, Trabalho, Território e Natureza, e os integrantes dos movimentos sociais com quem convivi, além dos atingidos que me emprestaram suas memórias durante a elaboração dos meus trabalhos acadêmicos.
E agora que vivemos, mais do que nunca, um tempo em as informações circulam com tanta rapidez e de forma tão midiática, com tantas disputas sobre visões de mundo, e em as coisas são rotuladas como “velhas” rapidamente, a cada dia valorizo mais a memória técnica na qual busco sempre apoio. A experiência no CEPEL, com a Silvia Helena Pires e os colegas que compunham a equipe de meio ambiente entre 2001 e 2005, e na Eletrobras, com Mirian Nuti, na Comissão de Meio Ambiente do Grupo Coordenador do Planejamento dos Sistemas Elétricos – GCPS em 1999, e durante as análises e acompanhamentos de projetos com colegas como Luiz Antônio Medeiros da Silva (in memoriam), Arlete Rodarte, Carlos Frederico Menezes, Fani Baratz, Maria Luiza Milazzo, Paulo Fernando Rezende, Rogerio Mundim, para citar alguns, me fez valorizar ainda mais o trabalho coletivo e a fortalecer meu posicionamento profissional.
Visita à UHE Lajeado (TO), em 2002, com Silvia Helena Pires.
A equipe do Departamento de Meio Ambiente da Eletrobras, a qual estou atualmente ligada, meus colegas de empresa, a equipe do meio ambiente do CEPEL, além das dezenas de colegas que participam dos grupos de trabalho do Comitê de Meio Ambiente das Empresas Eletrobras - CMA, em especial os GTs de Instrumentos de Gestão Ambiental e o de População Atingida, atualmente sob minha coordenação, são também importantes referências. Aprendo diariamente com cada um deles.
Destaco também a experiência com consultores, das mais diversas regiões do Brasil, muitos deles, professores em Universidades, e com profissionais de outros países. Mesmo sob a tensão de cronogramas, de contratos, sempre havia espaço para a reflexão, para a troca de experiências em busca de um olhar que permitisse conciliar objetivos muitas vezes irreconciliáveis.
E os componentes do CE.C3, em especial André Mustafa, ex-coordenador do Comitê, e Raquel Fontes, atual Secretária Executiva do Comitê, extremamente organizada e articulada. Aliás o André, nos conhecemos lá no início dos anos 2000, nas reuniões sobre o planejamento setorial que ainda era realizado pela Eletrobras. E se houve algum lado positivo na pandemia, a possibilidade de realizar reuniões remotas com mais frequência para resolver as questões relacionados ao Comitê aproximou e me conectou mais ainda com a Silvia Helena e com o André.
XXVI SNPTEE, 2022 (RJ) – André Mustafá, Daniella Soares e Silvia Helena Pires – integrantes do CE.C3.
Fazendo esse resgate, agradeço a possibilidade de ter participado de tantos trabalhos bons junto de tanta gente boa, que ajudou a construir “o meio ambiente do setor elétrico”. Enfrentamos muitos desafios e vamos enfrentar outros tantos. Algumas pessoas, que são referências do início da minha carreira e se transformaram em amigas queridas, o tempo chamou para dançar mais cedo, mas elas estarão sempre comigo.
CB: O que lhe estimulou a participar do CIGRE-Brasil e qual a sua atuação dentro desta organização?
DS: No dia em que apresentei minha Dissertação de Mestrado recebi o convite da Silvia Helena Pires para integrar a equipe de meio ambiente do Cepel. E, então, comecei a participar de eventos específicos do setor elétrico, como o SNPTEE e o SMARS e a ter os primeiros contatos com o Comitê de Estudo de Desempenho Ambiental do CIGRE-Brasil. A participação na elaboração das brochuras técnicas “Proposta de Indicadores de Sustentabilidade para avaliação de Sistemas de Transmissão de Energia Elétrica em operação” e “Experiência em Planejamento e Gestão Ambiental”, ambas finalizadas em 2008 e coordenadas, respectivamente, pela Arilde Sutil Gabriel e pela Mirian Nuti, com a participação da Nair Palhano, outra referência, pelo ineditismo das discussões temáticas e pela possibilidade de interagir com colegas de várias empresas, sem dúvida somaram à minha atuação profissional e ao meu método de trabalho.
A atuação no Comitê foi sendo ampliada, através da participação nas discussões técnicas, no envolvimento na organização de eventos e como integrante de comissões técnicas. Em outubro de 2019 fui convidada pelo André Mustafá, então coordenador do CE-C3 e integrante da recém eleita Diretoria Executiva do CIGRE-Brasil para o quadriênio 23-27, para secretariar o Comitê e ano passado fizemos a transição da coordenação, juntamente com a Raquel Fontes, como nova Secretária.
XXV SNPTEE, 2019 (MG) – André Mustafá, Daniella Soares, Denise Matos, Luciana Paz, Katia Garcia, Raquel Loures – integrantes do CE.C3.
CB: O que você acha das ações de integração das mulheres promovidas pelo CIGRE-Brasil?
DS: Destaco a iniciativa do Fórum das Mulheres no SNPTEE, especialmente os de 2017 e de 2022. Lembro, em particular, do depoimento de uma engenheira recém-formada, que estava na plateia no Fórum de 2017, que mencionou não só a questão da igualdade de gênero, mas também a questão racial, nas faculdades relacionadas, especialmente, às ciências exatas. É importante mantermos esses espaços e angariarmos a presença de mais e mais colegas homens, de forma a compartilharmos ideias que contribuam para a promoção da igualdade de oportunidades para todas as pessoas, da promoção de lideranças femininas, da igualdade de remuneração e paridade salarial de gênero, da cultura inclusiva e de políticas antiassédio sexual e antirracistas e que promovam o respeito à diversidade.
CB: Quais conselhos você daria para jovens estudantes e profissionais mulheres que também desejam trilhar esta carreira?
DS: No “caderninho das lições aprendidas e a aprender”, ao lado de poemas e frases dos livros que li e canções que ouvi, escrevi algumas notas para mim: estude e esteja disponível para aprender sempre, escute e valorize os que desempenham a mesma função que você há mais tempo, se posicione, “projete sua voz", esteja aberta a todas as experiências possíveis e aprenda a estabelecer limites na vida profissional e pessoal. Seja resiliente, leve e não se cobre tanto, contemple os momentos de solidão e aja, sobretudo, com ética. Leia mais livros escritos por mulheres, preferencialmente de diferentes culturas, e participe de grupos de discussão e de apoio a mulheres. Esteja atenta ao gaslighting, mansplaining, manterrupting e bropriating, termos mencionados na palestra da então Diretora da ANEEL e atual Diretora de Assuntos Corporativos do ONS, Elisa Bastos, no II Forum de Mulheres do CIGRE-Brasil em 2019 no XXV SNPTEE. Aliás, a Eletrobras Furnas fez uma campanha ótima sobre esses assuntos em março de 2022. Fica a sugestão para todas, e todos, assistirem). Se tiver possibilidade, viaje, conheça outras culturas, aprenda outras línguas, estude em outro país. Mas, acima de tudo, aprenda a ouvir sua intuição. Ela nos auxilia a termos sabedoria para lidar com as emoções, tanto na vida pessoal, como na vida profissional, e é poderosa nos momentos de tomada de decisão e naqueles em que precisamos ter compaixão e mesmo perdoar, inclusive a nós mesmas, para seguirmos livres como o mar ... Se alguns desses apontamentos puderem ser úteis nas trajetórias profissionais de outras mulheres, e por que não, de alguns colegas homens, se trouxerem alguma reflexão, acho que terei dado alguma contribuição. Que bom! Fico feliz!
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Nota da entrevistada: as ideias aqui expostas são de responsabilidade da autora e não representam necessariamente as opiniões das instituições às quais ela esteve ou está relacionada, ou das pessoas citadas.