João Carlos Mello, diretor-presidente do CIGRE-Brasil
Antonio Carlos Barbosa, diretor técnico do CIGRE-Brasil
Iony Patriota, membro do Conselho de administração do CIGRE-Brasil
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Os associados do CIGRE Brasil são sempre estimulados a fazer paralelos com o mundo elétrico em diversos mercados, buscando reflexões sobre nossa realidade nacional. Fora algumas peculiaridades de cada sistema, as tendências estão convergindo para uma transição energética com baixa emissão de carbono na produção de energia elétrica, e também como auxílio a outros setores, nesta mesma meta, oferecendo uma maior intensidade de eletrificação. As grandes mudanças no setor elétrico que conhecemos é uma certeza mundial, claro que com diferentes tonalidades e prazos.
A diretora do Australian Energy Market Operator (AEMO) nos ofereceu recentemente uma excelente visão comparativa do novo setor elétrico que vamos planejar, construir e operar. Até então, o que tínhamos era um avião Jumbo imenso com a missão de nos conduzir com segurança, com turbinas possantes e com redundância. A missão de transportar com segurança é a mesma daqui para frente, mas a máquina vai mudar. Conhecer a nova máquina é uma missão técnica fundamental!
Essa missão técnica deve ser conduzida com as mesmas virtudes e busca contínua de conhecimento com as quais construímos a maravilhosa máquina que já alcançamos: o nosso setor elétrico. A elaboração de novos paradigmas para o setor exige criatividade, perseverança e a modéstia para aprimorar nosso conhecimento. A capacidade de superação da engenharia nacional é uma grande virtude para esse novo futuro.
O último apagão do Sistema Interligado Nacional (SIN), ocorrido no dia 15 de agosto de 2023, ainda sem uma causa totalmente conhecida, comoveu a sociedade e deixou atônitos os atores do setor elétrico nacional, da engenharia, da academia, as entidades setoriais e associativas. Iniciado por um simples evento do desligamento intempestivo de uma linha de transmissão, evoluiu para uma sequência de desligamentos em cascata sem precedentes em nossa história, com interrupção de aproximadamente 22 GW de potência, em 25 estados e o Distrito Federal. O evento não apenas contrariou o famoso critério de planejamento conhecido como N-1, mas ocorreu num horário matinal de consumo mais acanhado, numa época com plena disponibilidade de geração hídrica, térmica e renovável, demonstrando uma fragilidade preocupante do SIN.
Por sua extensão e complexidade, esse apagão extrapola o âmbito restrito do setor elétrico, permeando as áreas de defesa civil e segurança nacional, em particular na proteção e resiliência das infraestruturas críticas do nosso país. A exemplo do famoso apagão do Amapá, que deixou a população daquela parte da nação sem energia por semanas, este caso evidenciou novamente uma vulnerabilidade preocupante nos aspectos de planejamento, operação e regulação setorial. Diversas fragilidades já apontadas anteriormente resultaram em um apagão com dimensões catastróficas para nosso país.
Como sempre ocorre nestas situações, a mídia e os atores envolvidos apressam-se em externar posicionamentos, distribuindo responsabilidades, ou propondo soluções rápidas que os beneficiem, antes que um diagnóstico completo seja concluído. Pela seriedade e importância que o assunto requer, e pelas implicações que advirão após sua análise, é imprescindível que a sociedade em geral, além dos atores diretos e entidades setoriais, participe das definições das medidas necessárias para evitar ocorrências futuras. Após a publicação do Relatório de Análise de Perturbação (RAP), em elaboração pelo Operador Nacional do Sistema (ONS), será possível uma reflexão mais apurada do que já conhecemos, e a identificação do que precisamos aprimorar para conduzir com segurança nossa grande máquina que é o SIN.
Esse apagão ocorre em um momento de transição energética mundial, com mudanças significativas na tecnologia utilizada, notadamente nos recursos Energéticos Distribuídos (RED) e na Mini e Microgeração Distribuída (MMGD). Coincide também com a discussão, em diversos níveis, de propostas de modernização do Setor Elétrico Nacional – não apenas dos critérios utilizados para planejar e operar o SIN, mas em relação à própria estrutura setorial.
Independentemente do detalhamento das causas originárias, as informações divulgadas preliminarmente sinalizadas pelo ONS, apresentam uma série de sintomas que indicam potenciais fragilidades na gestão do SIN, que precisarão ser aprofundados, no RAP e nas análises subsequentes. Entre esses sintomas é possível citar:
- Fragilidade dos critérios de planejamentoutilizados para gerir o SIN
- Fragilidade dos modelos em geral, incluindo os de equipamentos,adotados para emular a operação do SIN
- Fragilidade na observabilidade e controlabilidadeda MMGD e RED
- Fragilidade da recomposição do sistema
- Fragilidade na gestão de desastres
Destaque-se que estas constatações são ainda sintomas ou fragilidades já observadas, cujas causas precisam ser investigadas, durante e após o diagnóstico definitivo do RAP. Só após essas análises será possível propor medidas preventivas concretas.
Objetivando contribuir para essa análise, os parágrafos seguintes listam possíveis medidas derivadas da experiência internacional do CIGRE, para cada fragilidade identificada, que, dependendo das causas que forem confirmadas, podem ajudar a evitar sua repetição.
Fragilidade dos Critérios de Planejamento
Não obstante o planejamento ser efetuado seguindo critério de planejamento adotado internacionalmente (N-1), as consequências desses apagões demonstram uma clara inadequação para determinadas áreas do nosso país. A inadequação decorre da priorização dada à confiabilidade da rede, sem ponderar adequadamente sua resiliência. A confiabilidade garante valores aceitáveis para a frequência e probabilidade de falta do suprimento, enquanto a resiliência pondera o tempo necessário para recomposição do fornecimento, e o impacto socioeconômico da interrupção, mesmo em situações antes consideradas improváveis, ou ocultas e não percebidas.
Historicamente o critério N-1 tem demonstrado ser um critério razoável para avaliar a adequação sistêmica, afinal se proteger contra tudo pode custar mais caro. No planejamento de redes elétricas para regiões desenvolvidas, com estruturas logísticas eficientes de transporte, energia, e proximidade com a indústria de equipamentos elétricos, é possível assegurar alguma resiliência através da reposição rápida e disponibilidade de peças sobressalentes.
O contrário ocorre em grande parte dos estados brasileiros, com redes logísticas precárias de transporte, energia, e comunicação, e distantes das fábricas dos principais equipamentos. O RAP do apagão do Amapá já tinha diagnosticado a necessidade de adoção de critérios de confiabilidade diferenciados para estas regiões. Este mesmo diagnóstico já tinha sido constatado anteriormente pelo Tribunal de Contas da União, em 2014, ao avaliar apagões ocorridos nestas regiões.
Cabe lembrar que o imbatível avião de turbinas super possantes e redundantes, como já anunciamos que sempre fomos, está mudando e novos olhares devem ser priorizados para manter nossa máquina SIN voando com segurança.
Fragilidade dos Modelos de Equipamentos
A inabilidade dos modelos dinâmicos utilizados para reproduzir a ocorrência revelou uma fragilidade preocupante, motivada pela crescente penetração dos RED e MMGD no SIN. Caracterizados por sua volatilidade e inflexibilidade de despacho, esses recursos parecem carecer da validação física dos modelos dinâmicos utilizados para conexões em larga escala.
Diferentemente dos modelos utilizados na geração hidráulica e térmica, esses modelos são considerados proprietários, e desenvolvidos pelos próprios fabricantes, os quais são traduzidos para os softwares nacionais, possivelmente sem uma adequada validação física.
Mesmo quando abertos, são protegidos por acordos de confidencialidade nos estudos de conexão destes recursos. Para os demais casos, utilizam-se os modelos fornecidos pelos fabricantes, apenas traduzidos para os simuladores nacionais. Por utilizarem inversores na conexão com a rede, e não possuírem inércia suficiente, são altamente vulneráveis a variações de tensão e frequência, sendo programados principalmente para protegerem a geração local, e não a confiabilidade e resiliência do SIN. Este diagnóstico vale não apenas para os modelos de comportamento dinâmico, quanto para os modelos utilizados nos ajustes dos sistemas de proteção, cujos algoritmos tradicionais podem não ser aplicáveis.
Este diagnóstico é reforçado pela vertiginosa integração de REDs, tanto para operação quanto para proteção, e sem uma fiscalização rigorosa do comissionamento e ensaios de campo antes da conexão. Esta exigência constava historicamente do comissionamento de recursos hídricos e térmicos concentrados, quando o comportamento dinâmico era ditado pela alta inércia da fonte e potência de curto-circuito. Adicionalmente, os modelos agregados utilizados no SIN dependem destes modelos individuais, sendo objeto de intensa pesquisa internacional pelo CIGRE. Urge a reorganização de competência da engenharia nacional na validação destes modelos, a nível individual, e no desenvolvimento e validação de modelos agregados, a exemplo do que ocorria no passado.
Na realidade, a multiplicidade e grande pulverização das novas fontes é um desafio de logística. O impacto individual é realmente pequeno; no entanto, grandes concentrações como observado no nosso Nordeste brasileiro, podem amplificar efeitos para o SIN. Mais uma vez precisamos conhecer nossa nova máquina.
Fragilidade da Observabilidade e Controlabilidade
A extensão continental do SIN, conjugada com a penetração vertiginosa de REDs, tornam quase impossível a um único operador nacional ter a visibilidade e controlabilidade necessárias à sua operação segura. Urge que sejam adotadas medidas estruturais que complementem a gestão estratégica do SIN por um operador nacional, com uma rede distribuída de planejamento e operação regionais e locais. A criação dos chamados Operadores da Distribuição (DSO – Distributed System Operator) revela-se como uma possibilidade, para coordenar e gerir o planejamento e operação da MMGD e RED. O DSO pode ser independente ou internalizado às distribuidoras atuais, cumprindo um papel coadjuvante importante na hierarquia de monitoramento e controle da geração e demandas distribuídas. Adicionalmente, sugere-se tornar abertos e on-line todos os dados utilizados na operação do sistema, em particular a rede nacional de sincrofasores, permitindo a avaliação independente da operação do SIN, a nível local e nacional, pela academia e engenharia nacionais.
Tomando o avião como analogia mais uma vez, todos sabemos que “voo cego” é tudo o que os pilotos querem evitar. Não podemos deixar nosso operador em numa situação de “voo cego”.
Fragilidade da recomposição do sistema
O excessivo tempo de recomposição do sistema revelou a inoperabilidade de parte da recomposição fluente pelos agentes, recurso indispensável na operação de uma rede do porte do SIN. O sucesso deste recurso depende do cumprimento expedito das recomendações prévias do operador nacional, mas também da preparação dos agentes envolvidos. Urge que sejam tomadas medidas aprofundadas para conhecer os problemas, e avaliar uma possível automação destes processos, vitais para a resiliência do SIN.
Há necessidade de revisão periódica dos procedimentos de recomposição, adequando-os à evolução da carga e da geração. Também é fundamental utilizar ferramentas computacionais que reproduzam fielmente o comportamento dinâmico dos equipamentos do SIN em todas as fases do planejamento da operação.
Insistindo na similaridade com o nosso avião, o “piloto automático” deve ser programado para que, em eventuais ocorrências, possamos retomar a rota que desejamos. As ocorrências talvez estejam sendo cada vez mais complexas, e para correção de rota não temos as mesmas ferramentas tradicionais.
Fragilidade na gestão de desastres
Embora o Brasil já disponha, há mais de 10 anos, de políticas bem definidas para segurança e defesa de infraestruturas críticas, e para o enfrentamento de desastres sociais, são aparentemente insuficientes as iniciativas para sua implementação, em particular com uma visão sistêmica, para o setor elétrico. Excetuam-se os acidentes com rompimento de barragens, motivado pelos desastres recentes no setor de mineração.
Urge que um plano similar seja desenvolvido para o setor elétrico, seguindo as recomendações da Política Nacional de Segurança de Infraestruturas Críticas (PNSIC), evitando a improvisação de ações, aumentando a resiliência da rede elétrica, e reduzindo o impacto socioeconômico desses apagões, que tantos danos provocam ao país.
O avião SIN não pode cair de jeito nenhum, mesmo que tenhamos que colocar outro avião para colocar combustível em pleno voo. Por similaridade, é nisso que devemos focar na eminência e ocorrência de desastres.
Conclusões e recomendações
A mudança do critério de confiabilidade seria uma primeira medida para garantir não somente que a frequência ou probabilidade de ocorrência de eventos deste tipo sejam reduzidas, mas também a diminuição da extensão do seu impacto.
É necessário que suas consequências, medidas pela extensão da carga interrompida, da população afetada, e pela duração e impacto socioeconômico da interrupção, sejam também consideradas. O nível de eletrificação da sociedade é bem alto, e vai aumentar cada vez mais, e o bem comum energia elétrica possui um valor que deve ser considerado na construção de soluções. Que valor é esse? As sociedades mais desenvolvidas frequentemente realizam pesquisas dedicadas na valoração das interrupções para diferentes núcleos da sociedade. Não é o nosso já experimentado “custo de déficit” do impacto de um racionamento, e sim falhas de diversas durações e frequências. É intuitivo perceber que a digitalização cada vez mais intensa de processos não convive bem com padrões de suprimento não condizentes.
Em adição, fatores tradicionalmente mensurados em análises de risco e em planos de atendimento a desastres, relacionam-se com a resiliência da rede elétrica, ou sua ausência, produzindo impactos mais danosos que faltas momentâneas de energia, em particular em regiões carentes do nosso país, onde o aprofundamento do problema tende a durar mais que o aceitável.
As demais fragilidades apontadas nesta posição técnica, ora oferecida pelo CIGRE Brasil, exigem das autoridades do setor elétrico uma reflexão crítica sobre todo o processo de planejamento, regulação, operação, recomposição e fiscalização dos ativos e atores envolvidos no SIN. Estas fragilidades só serão suprimidas com levantamento técnico rigoroso e independente, com investimento de longo prazo na formação de recursos humanos e com o fortalecimento da engenharia nacional, responsável pela grandeza do SIN.
A máquina está mudando e a missão é mesma, voar e pousar com segurança. A engenharia nacional é capaz de conhecer os novos ajustes necessários para manter o SIN “voando” em cruzeiro.