O Fórum de Mulheres do CIGRE-Brasil, na sua missão de fomentar a participação feminina, no âmbito do setor elétrico, tem dado a conhecer a trajetória de mulheres de destaque que, como Solange Mendes Geraldo Ragazi David, têm conquistado espaços importantes no setor elétrico brasileiro, por caminhos às vezes, bastante singulares, como o desta historiadora e advogada, que atua há 24 anos no âmbito da Engenharia Elétrica.
Esta razão levou a sua indicação como palestrante no II Fórum de Mulheres que será realizado no dia 13/11/2019, durante o XXV SNPTEE que terá como mediadora Carla Damasceno Peixoto, diretora de Assuntos Corporativos do CIGRE-Brasil e como palestrantes convidadas Adriana de Castro Passos Martins (coordenadora do Comitê de Estudos D1 e engenheira da CEMIG), Elisa Bastos Silva (da ANEEL) e Patrícia Teixeria Asano (membro do Comitê de Estudos C5 e professora da UFABC).
Com formação inicial em Direito e História, seus títulos de Mestre e Doutora em Engenharia Elétrica a aproximaram do setor. Pode nos falar um pouco sobre esse processo?
Primeiramente, cumprimento o CIGRE-Brasil e a iniciativa de manter o Fórum de Mulheres. A medida integra um conjunto de ações necessárias para fortalecer profissionais que devem atuar em iguais condições, num setor predominantemente masculino, por questões estruturais e conjunturais da sociedade brasileira, que têm sido alteradas ao longo dos anos.
Atuo no setor elétrico há 24 anos, inicialmente em privatizações de distribuidoras e reestruturações societárias de empresas. A presença do advogado no setor passou a ser inexorável com o Projeto RE-SEB (a partir de 1995), o início das privatizações, a ampliação da importância da regulação no Brasil, bem como o modelo de mercado adotado em 1998. Nesse contexto, minha formação de historiadora auxiliou na organização de conceitos e marcos do setor elétrico, enquanto minha formação de advogada facilitou no tratamento de princípios e do frame regulatório (leis, decretos, portarias, resoluções). Passei a contribuir na análise, no debate e na construção de soluções e mecanismos que vieram a ser adotados, considerando a aplicação de disposições de duas leis básicas do setor: a Lei de Concessões, de 1995, e a Lei da ANEEL, de 1996.
Trabalhei ativamente a partir da 3ª privatização de distribuidora do setor elétrico (Coelba). Nas privatizações havia intensa discussão dos contratos de concessão, lei das Sociedades Anônimas, renegociações de financiamentos, contratos diversos, ajustes prévios à mudança de controle acionário e sobre direitos e obrigações dos concessionários, dos funcionários, dos controladores estatais. As equipes eram multidiciplinares (muitos engenheiros, economistas, contadores, e poucos advogados). Ricos debates na ANEEL e com os governos, na maioria das vezes sob a coordenação do BNDES, responsável por inúmeros processos de privatização. Foi um grande aprendizado e um marco. Posso dizer que os outros profissionais passaram a acreditar e a confiar mais nos advogados, inclusive exigindo sua presença. Particularmente, conhecia toda a Lei de Concessões e a lei da Aneel "de cabeça", assim como os contratos de concessão de distribuição de energia elétrica.
Paralelamente às minhas atividades como advogada, continuei a desenvolver atividades acadêmicas. Atuava também como professora no setor elétrico, o que resgatava meu viés de professora de História. Depois de um MBA de Energia na USP, tomei a decisão de fazer Mestrado. Acabei o Mestrado e iniciei imediatamente o Doutorado em Engenharia Elétrica - Sistemas de Potência. Meu orientador foi o Professor Doutor Marco Antonio Saidel, a quem faço uma menção especial, pelo apoio que sempre recebi e, também, em homenagem a alguém essencial na vida de todos: os professores. Aliás, foi minha atuação no setor, particularmente no MAE e na CCEE (onde estou há quase 18 anos), bem como a convivência com grandes profissionais do setor, que me levaram a ser PHD em Ciências - Engenharia Elétrica, do que muito me orgulho.
Sua dissertação de mestrado, desenvolvida no Departamento de Energia e Automação Elétricas da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, esteve voltada à visão legal-regulatória sobre os riscos para o desenvolvimento da geração de energia elétrica no Brasil e sobre os mecanismos de incentivo estabelecidos pelo poder público, a partir do modelo setorial definido em 2004. Poderia nos fazer uma breve apresentação das suas conclusões neste trabalho?
Em meu Mestrado, com base em fatos, dados estatísticos e elementos empíricos, concluí que o ambiente de negócios no Brasil era bastante propício ao desenvolvimento da geração de energia elétrica como uma atividade econômica lucrativa, ainda que esteja circundada por inúmeros riscos ou que ocorra sob o regime de concessão de serviços públicos. Considerando a complexidade do setor, analisei e apresentei de forma estruturada vários riscos, mas também inúmeros benefícios e incentivos adotados pelo país que beneficiaram os geradores, como o desconto na TUSD e TUST, ações de programas governamentais, como o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, o Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura – REIDI, linhas de financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES e outros. A própria estrutura institucional e regulatória também é favorável a essa atividade econômica, de grande atratividade para os investidores nacionais e estrangeiros.
Como sugestão e contribuição acadêmica e para a sociedade, recomendei a adoção de um Sistema Integrado Brasileiro de Energia Elétrica – SIBEE/Geração. Nele constariam todas as informações relativas ao empreendimento de geração, de forma individualizada, ou seja, constaria a “vida do empreendimento”, com variados dados, sob diversos ângulos, desde sua concepção até a operação, riscos e benefícios, direitos e obrigações vinculados. O SIBEE traria como benefícios: a) visão integrada do empreendimento de geração, sob a ótica do Estado, do regulador, do investidor, do pesquisador, da sociedade em geral; (b) aumento da eficiência na adoção de políticas públicas e sua avaliação (no ACR, por exemplo, poderia ser observado qual o verdadeiro “custo” da energia elétrica, pois este, de fato, pode ser entendido como a somatória do preço de venda nos leilões e dos custos evitados em razão dos benefícios públicos concedidos); (c) melhoria da qualidade de determinadas atividades, que ocorrem até de forma descentralizada, como a fiscalização da geração de energia elétrica; (d) aumento da eficiência e dinamismo quanto à verificação de metas relativas ao empreendimento, sob o aspecto operacional, comercial e financeiro, por parte do empreendedor, o que poderia incentivar o investimento no segmento; e (e) disseminação do conhecimento sobre as atividades de geração de energia elétrica e todas as suas inter-relações, direitos e obrigações, riscos e incentivos.
Já no Doutorado defendido na mesma escola, no ano passado, a ênfase da sua pesquisa se deu em torno da “Tríade Energia Elétrica, Desenvolvimento Sustentável e Tecnologia” em que aponta a necessidade de uma Regulação adequada a um mercado “cada vez mais 4D – digitalizado, descarbonizado, descentralizado e democrático”. O poder público e o mercado brasileiro de energia estão preparados para isso?
Entendo que o poder público e o mercado estão parcialmente preparados para o mercado 4D, o que é um grande desafio para o país. Há iniciativas pontuais e não estruturais. Utilizando uma sigla, diria que a tecnologia é DEI - dinâmica, essencial e impaciente - ela não espera, ocupa espaços e o cotidiano dos negócios e das pessoas. Por isso, deve se conciliar a visão de prioridade e senso de urgência com segurança regulatória, de forma estrutural. Outro grande desafio reside na discussão sob a alocação de benefícios, custos e riscos e na questão essencial: quem vai pagar a conta do que for definido e implantado, ainda mais num país continental de realidades distintas, como se observa com a própria adoção das tarifas sociais de consumidores baixa renda e quilombolas, além de inúmeros subsídios e incentivos criados e pagos, em geral, pelos consumidores de energia elétrica. Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário também devem se questionar quanto à sua atuação sob os três pilares do desenvolvimento sustentável: o ambiental, o econômico e o social, principalmente.
Em que medida o seu trabalho como vice-presidente do Conselho de Administração da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica - a CCEE – se relaciona e retroalimenta das temáticas de pesquisa a que tem se dedicado na academia?
As atividades na CCEE envolvem diversos temas do setor elétrico e minhas atividades acadêmicas permitem a ampliação da visão sistêmica e a observância de discussões externas relevantes, sob os aspectos conceituais e de base, principalmente em razão da grande produção e variabilidade de questões. Na verdade, é um caminho de mão dupla, que se relaciona e retroalimenta de forma natural e salutar, pois o que importa é o profissional como um todo, que é resultado de seus aprendizados, experiências, realizações e vivências nos diversos campos. Devo registrar que mantenho uma linha firme de separação e resguardo de questões confidenciais da CCEE quando desenvolvo minhas atividades acadêmicas e de pesquisa.
Como o CIGRE-Brasil, a CCEE participou recentemente da FIEE Smart Energy, uma tradicional feira de negócios da cadeia produtiva de energia, realizada em São Paulo, entre os dias 23 ao 26 de julho. Ali, a senhora destacou, no painel “Novos Agentes na Comercialização de Energia Elétrica: varejistas e consumidores entrantes em 2019 e 2020”, o cenário de expansão do mercado livre de energia. Pode comentar um pouco este cenário?
O Brasil precisa definir a sua fronteira entre o mercado atacadista e o mercado varejista. Em 1998 foi estabelecido que o modelo do setor elétrico é de mercado atacadista, com agentes geradores, distribuidores e comercializadores negociando grandes blocos de energia, permitindo-se o consumidor livre com carga acima de 3 MW. Nos últimos anos o número de agentes de pequeno porte no mercado livre (de 0,5 a 3 MW) cresceu sobremaneira, em especial a partir de 2007, com o incentivo às fontes renováveis e a introdução de descontos na TUSD e na TUST, além de outros benefícios. Esse movimento é muito importante, mas é necessário discutir se deve haver limites. O mercado livre pode se ampliar ainda mais, inclusive em razão da elevação das tarifas de energia elétrica ocorrida nos últimos anos, com índices bem superiores à inflação. O Ministério de Minas e Energia também já adotou um cronograma de ampliação da abertura do mercado, como se verifica na Portaria MME nº 514/2018.
A questão é o mercado que se quer no Brasil: atacadista ou varejista. Os ganhos com a competição e a eficiência podem resultar em redução de custo e é isso que se busca. A discussão é de fundo, pois se o país quer alçar outros voos, como a adoção de uma bolsa de energia elétrica e de uma clearing house, como em diversos outros mercados mais maduros do mundo, a atuação de agentes menores ocorre via agentes varejistas que atuam no atacado e não de maneira direta. Isso porque há um custo envolvido nessa estrutura (como as garantias financeiras a serem aportadas), além de uma complexidade regulatória. A liberdade de escolha do consumidor de pequeno porte permanece (a liberdade é um bem em si só), mas ele deve escolher entre agentes varejistas e produtos e serviços ofertados, e não atuar diretamente no mercado atacadista.
Finalmente, nesses diferentes contextos do setor elétrico brasileiro pelos quais tem circulado, como percebe a presença feminina?
A presença feminina tem se ampliado por uma simples razão: competência, comprometimento, dedicação, determinação e busca de excelência quanto ao conhecimento técnico e prático.
Não se trata de empoderamento feminino (não utilizo esse termo), mas de qualificação no sentido amplo da expressão. Qual é o maior segredo para a qualificação: educação, educação e educação. Lembro-me de uma frase atribuída a Nelson Mandela: "A educação é a arma mais poderosa que podemos usar para mudar o mundo." Aliado a tudo isso há um fator decisivo: o setor elétrico é apaixonante e desafiador. Como não se render, não é mesmo?